Notícias
Exclusivas
Copa do Mundo de Clubes, Lei Bosman e o mito da superioridade europeia

Copa do Mundo de Clubes, Lei Bosman e o mito da superioridade europeia

Confrontos entre times sul-americanos e europeus questionam a narrativa criada neste século

| Autor: Gustavo Nascimento

Foto: Getty Images

A Copa do Mundo de Clubes surge em 2025 como uma grata surpresa aos espectadores de futebol, que por muitos anos precisaram lidar com as incertezas do real nível em que se encontram os times dos seus respectivos países. A noção geral, criada com base no abismo econômico que existe no esporte, tendeu a colocar a Europa - como um todo - em uma posição de superioridade em relação aos outros continentes e contextos futebolísticos. 

Contudo, o início da competição tem evidenciado que grande parte das narrativas criadas ao longo deste século, no que se refere às diferenças de nível entre as equipes de diferentes países e continentes, não se sustentam na realidade. Diferentemente do que se foi falado por muito tempo, a Europa não pratica “outro esporte” em relação aos demais; não há abismo.

Lei Bosman e o início do distanciamento

Antes de 1995, a disputa dos campeonatos mundiais reconhecidos pela FIFA costumava ser equilibrada entre os clubes europeus e sul-americanos, com certa dominância da América do Sul. Ao todo, foram disputadas 33 edições nesse período, com 20 títulos para os clubes sul-americanos e 13 conquistas europeias.

Porém, a dominância sul-americana nos campeonatos mundiais foi substituída por uma incapacidade crônica de competir contra os europeus a partir de uma decisão judicial que mudaria os rumos do esporte: A Lei Bosman. 

O processo foi iniciado em 1990, fruto de uma ação movida pelo belga Jean-Marc Bosman contra o RFC Liege, clube que atuava na época. O jogador recusou uma oferta de renovação de contrato que diminuiria seu salário em 75%, além de ter recebido uma proposta do Dunkerque, da França.

Contudo, o Liege não entrou em acordo com o clube francês e Bosman se viu sem poder atuar pelo clube belga ou se transferir para a França. À época, só era permitido que jogadores de futebol com contrato expirado se transferissem para outros clubes se o clube anterior recebesse uma compensação financeira. 

As complicações burocráticas “melaram” a negociação com o Dunkerque, mas Bosman conseguiu rescindir seu contrato ainda em 1990 e se transferir para o Olympique Saint-Quentin da França. Mesmo assim, o jogador deu sequência no processo contra o Liege, que só teria fim em 1995, com a decisão a favor do belga, que resultou na Lei Bosman.

A decisão, que é constantemente citada como “o fim da escravidão no futebol”, permitiu que jogadores deixassem seus times após o final de seus contratos, o que significa que os atletas a partir daí teriam a liberdade para trocar de clubes e buscar contratos mais favoráveis financeiramente.

Além disso, a lei também derrubou as restrições à contratação de jogadores estrangeiros por clubes europeus, desde que os atletas possuíssem cidadania de um país da União Europeia. Na época, qualquer trabalhador da União Europeia (UE) poderia circular livremente para atuar no mercado de trabalho de outros países da UE, o que ainda não acontecia no futebol até então.

A Lei Bosman fez com que os futebolistas tivessem os mesmo direitos que um trabalhador comum, deixando de ser vistos como estrangeiros para a montagem dos elencos e abrindo espaço para as equipes contratarem atletas de outros continentes. os mesmos direitos de um trabalhador comum e pudessem atuar por equipes de outros países na Europa sem serem vistos como estrangeiros para a montagem dos elencos. Desse modo, as equipes europeias puderam se tornar mais “internacionais”, já que o limite de estrangeiros não seria mais ocupado por jogadores com passaporte europeu.o que abriu espaço para a importação em larga escala de atletas de outros continentes.

Dessa forma, o futebol passou por um processo de centralização do poderio esportivo em torno dos maiores times da Europa, localizados em países como Espanha, Alemanha, Itália, Inglaterra e França. Com dinheiro e força midiática, essas equipes tiveram condição de se reforçar cada vez mais com os melhores jogadores de diferentes nacionalidades, enfraquecendo ligas periféricas na Europa e fora dela.

Antes da Lei Bosman, a Liga dos Campeões - maior torneio de clubes do futebol - foi vencida por 20 equipes de 10 países diferentes. A partir de 1995, apenas o Ajax, da Holanda, ainda em 95, e o Porto, de Portugal, em 2004, conseguiram entrar no seleto grupo dos campeões da competição, que abriga outros 11 times de apenas cinco países. 

No que se refere à disputa dos campeonatos mundiais, os gigantes europeus se colocaram em um patamar quase inalcançável a partir da Lei Bosman. Por questões econômicas, a missão de segurar os jovens talentos sul-americanos, que sempre foi difícil, se tornou quase impossível.

O mesmo processo de extração de talentos também acontece com as federações dos outros continentes. Invariavelmente, o dinheiro ditou as regras do jogo e fez com que os melhores marroquinos, mexicanos e japoneses - por exemplo - também fossem exportados para os grandes centros europeus.

Sendo assim, a disputa que era vencida por uma boa margem pelas equipes da CONMEBOL (20 a 13) se tornou ainda mais desequilibrada a favor dos times da UEFA. De 1995 até hoje, foram 23 títulos europeus contra somente seis sul-americanos.

Retomada da autoestima nas periferias do futebol

Quase 30 anos de dominância dos "super times" europeus nos Mundiais moldaram parte da opinião pública de modo que se passou a acreditar que o futebol sul-americano estaria defasado e atrasado em relação à Europa como um todo. A disputa da Copa do Mundo de Clubes, realizada pela primeira vez neste ano, veio para rebater essa tese e mostrar que o futebol ainda é o famoso "11 contra 11".

Os sul-americanos foram aos Estados Unidos para mostrar que o oceano de distância entre América do Sul e Europa não se traduz no futebol e que as cifras bilionárias, por mais que sejam determinantes por montar elencos estrelados, não entram em campo. 

Dentre os feitos das equipes da Conmebol, o Botafogo, campeão da última Libertadores, conseguiu vencer o Paris Saint Germain, atual campeão da Liga dos Campeões, sendo essa a primeira vitória de um time sul-americano sobre um europeu em competições oficiais desde o título do Corinthians contra o Chelsea no Mundial de 2012. O alvinegro carioca também conseguiu se classificar no “grupo da morte” da competição, eliminando o Atlético de Madri. 

O Flamengo, por sua vez, venceu o Chelsea de virada, enquanto Fluminense e Palmeiras fizeram frente a Borussia Dortmund e Porto, respectivamente, com ambos os jogos terminando empatados por 0 a 0. A equipe alviverde foi mais uma a liderar seu grupo.

Além desses, o Boca Juniors fez dois jogos parelhos contra Benfica e Bayern de Munique, e o River Plate segue invicto. Na CONCACAF, o Monterrey empatou com a Inter de Milão, e o Inter Miami de Lionel Messi venceu o Porto, eliminando o time português.

Essa sequência de bons resultados reacendeu a discussão sobre o real nível em que se encontram os times europeus e as equipes das outras federações. Filipe Luís, treinador do Flamengo e ex-jogador com quase 10 anos de experiência no futebol europeu, explicou sua visão sobre o assunto.

"Existe uma elite no futebol onde 8 ou 10 clubes fazem parte. Tirando essa elite [europeia], o futebol brasileiro está no mesmo nível do 2º escalão europeu."

Como dito por Filipe Luís, é impossível ignorar a potência financeira de um seleto grupo de times, que se torna um ponto crucial para torná-los mais competitivos do que os outros dentro e fora da Europa. Ainda assim, fica evidente que o suposto abismo entre o futebol europeu e o jogo praticado nos outros continentes não existe.

Outro fator preponderante para o equilíbrio que se tem visto é a isonomia de condições de competitividade em relação, principalmente, ao calendário que as equipes encararam na temporada até o início da competição. 

O Mundial “tradicional” era disputado no fim do ano, ou seja, na metade de temporada para os europeus e no final para os sul-americanos, o que fazia com que as equipes da Conmebol chegassem extremamente desgastadas fisicamente e os times da UEFA chegassem com um ritmo muito mais acelerado. Com a Copa do Mundo de Clubes sendo realizada no meio do ano, as condições se invertem.

Mesmo assim, no recorte dos últimos 12 meses, os times brasileiros foram os que mais entraram em campo. Flamengo (77), Botafogo (73), Fluminense (72) e Palmeiras (70) ocupam as primeiras colocações dentre os 32 participantes do torneio no período.

Ou seja, o argumento de que os europeus estariam mais cansados que os sul-americanos não se sustenta na realidade.

Tags

Notícias Relacionadas