Após a morte, quem herda as músicas? Entenda como funciona a sucessão dos direitos autorais
Obras de artistas seguem protegidas por 70 anos e passam a herdeiros; caso Marília Mendonça expõe os bastidores
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Quando um artista morre, sua obra não desaparece — pelo contrário, ela pode continuar sendo executada, vendida, relançada e até mesmo remixada. Mas quem detém esses direitos após o falecimento? O que acontece com os lucros gerados? A resposta está no sistema legal de sucessão dos direitos autorais, que garante proteção à criação artística mesmo após a morte de seu autor — e tem ganhado destaque no Brasil, especialmente com o caso da cantora Marília Mendonça.
O que são direitos autorais?
Direitos autorais são um conjunto de normas legais que garantem ao criador de uma obra — seja ela literária, musical, visual ou científica — o controle exclusivo sobre sua utilização, reprodução, exibição pública e comercialização. No Brasil, essa proteção é regulamentada pela Lei nº 9.610/98, que estabelece duas categorias de direitos:
- Direitos patrimoniais, que envolvem o uso econômico da obra.
- Direitos morais, que asseguram a paternidade da criação e a integridade da obra, mesmo após sua morte.
E o que acontece após a morte do artista?
A morte de um artista não encerra seus direitos autorais. Segundo a lei brasileira, os direitos patrimoniais de uma obra continuam valendo por 70 anos a partir de 1º de janeiro do ano seguinte ao falecimento do autor. Durante esse período, somente os herdeiros legais ou os detentores designados por testamento podem explorar comercialmente essas obras.
O processo de sucessão segue as regras do direito civil, com a obra sendo integrada ao espólio do falecido e distribuída por meio de inventário judicial ou extrajudicial.
Quem pode herdar os direitos?
Os direitos autorais são transferidos aos herdeiros necessários, como filhos, cônjuges e pais — respeitando a ordem sucessória estabelecida pelo Código Civil. No caso de haver testamento, o autor pode indicar beneficiários específicos, mas metade do patrimônio deve obrigatoriamente ser destinada aos herdeiros necessários.
Além da herança, os herdeiros passam a ter a responsabilidade de proteger o legado do artista, o que inclui autorizar ou impedir usos indevidos da obra, garantir a citação correta do autor e preservar a integridade da criação.
A venda dos direitos autorais
Após o falecimento, os herdeiros podem licenciar ou vender os direitos autorais, total ou parcialmente, para terceiros — sejam empresas, editoras, gravadoras ou plataformas. Esse processo precisa ser formalizado por contrato escrito, com cláusulas claras sobre prazos, remuneração e condições de uso.
É uma prática comum, especialmente quando se trata de catálogos musicais altamente rentáveis. Um exemplo internacional foi o da obra de Prince, vendida para a Universal Music por US$ 300 milhões em 2020 após uma longa disputa judicial envolvendo seus herdeiros.
E o Ecad? Continua cobrando?
Sim. O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) continua recolhendo e distribuindo valores pela execução pública das músicas, mesmo após a morte do autor. Os valores arrecadados vão para os herdeiros devidamente registrados, conforme os percentuais definidos no inventário. Enquanto esse processo não é finalizado, a arrecadação pode ser depositada judicialmente até decisão definitiva.
Caso Marília Mendonça: como funciona na prática?
O falecimento da cantora Marília Mendonça em 2021 levantou dúvidas públicas sobre a administração de seu patrimônio artístico, estimado em R$ 500 milhões. Seu filho Léo, atualmente com 5 anos, é o único herdeiro legítimo, mas por ser menor de idade, a gestão de seus bens é exercida pela avó materna, Dona Ruth, com quem ele divide a guarda com o pai, o cantor Murilo Huff.
Segundo a própria Dona Ruth, o inventário da artista segue em andamento e todas as decisões financeiras precisam passar por prestação de contas judicial. As músicas da cantora continuam sendo executadas em rádios, plataformas e eventos — o que mantém a arrecadação de royalties ativa e protegida pelos próximos 67 anos (até 2092).
Em entrevista, Dona Ruth revelou a divisão dos percentuais: "O Léo ficou com 30% e eu fiquei com 20%, quando entrei para o escritório. Então ficaram 50% eles e 50% família", explicou. Isso significa que, além de herdeira, a mãe da cantora se tornou também sócia na gestão empresarial das obras.
Direitos morais: um legado eterno
Ao contrário dos direitos patrimoniais, os direitos morais do autor são perpétuos e inalienáveis. Mesmo após os 70 anos e a entrada da obra em domínio público, qualquer pessoa que utilize a obra deve:
- Creditar corretamente o autor.
- Manter a integridade da criação.
- Evitar alterações que comprometam a reputação do autor.
Isso significa que, mesmo após o fim da proteção econômica, a memória e a autoria do artista devem ser respeitadas para sempre.
O que fazer após o falecimento do autor?
- Registrar o óbito junto a entidades como ECAD ou Abramus.
- Iniciar o inventário, com apoio jurídico.
- Catalogar obras e contratos existentes.
- Registrar as obras ainda não registradas.
- Definir, via partilha judicial, os percentuais de cada herdeiro.
- Comunicar as associações de gestão coletiva para atualização dos pagamentos.
Por que isso importa?
Casos como o de Marília Mendonça, Freddie Mercury e Michael Jackson mostram que a obra de um artista pode seguir viva e lucrativa por décadas após sua morte — desde que sua sucessão seja bem administrada. Em tempos de plataformas digitais e reinterpretações, o legado artístico se tornou um ativo valioso, com potencial de influenciar gerações futuras.
Para os herdeiros, cabe o papel de zelar, preservar e valorizar esse legado, transformando a saudade em memória viva e culturalmente relevante. E, para o público, resta o compromisso de respeitar essa herança — seja ao ouvir uma música, assistir a um documentário ou compartilhar uma obra.