Entenda como o calendário do futebol brasileiro limita times e reduz a qualidade dos jogos
Jogos de baixa intensidade e alto números de lesões são sintomas do inchaço no calendário

Foto: Rafael Rodrigues/EC Bahia
Para além das questões táticas e técnicas, a parte física talvez tenha sido o fator preponderante para a construção da derrota do Bahia por 5 a 1 contra o Mirassol, no último domingo (31). Tão grande quanto a diferença em campo e no placar, foi a disparidade na quantidade de jogos disputados pelas equipes neste ano.
De um lado, o tricolor baiano chegou para a partida com impressionantes 58 jogos disputados no ano de 2025, enquanto o Mirassol foi a campo com somente 32 partidas realizadas na temporada. Ao mesmo tempo que o Mirassol jogou apenas no Campeonato Paulista e no Campeonato Brasileiro, o Bahia teve que dividir suas atenções entre Baianão, Copa do Nordeste, Libertadores, Sul-americana, Copa do Brasil e Brasileirão.
Na prática, essa diferença foi vista na preparação dos dois times para a partida. Enquanto o Mirassol teve uma semana de descanso e treinamento após a partida contra o Fortaleza, o Bahia teve apenas dois dias para descansar, treinar e viajar de Salvador até a cidade de Mirassol, no interior de São Paulo.
Além disso, a opção do treinador Rogério Ceni de escalar - e desgastar ainda mais - o time titular na partida contra o Mirassol prejudica a sequência do tricolor baiano, que terá nesta quarta-feira (3) o jogo de ida da final da Copa do Nordeste, contra o Confiança, em Sergipe. Ou seja, em um intervalo de seis dias, o Bahia terá disputado três jogos por três competições diferentes em três estados diferentes (Bahia, São Paulo e Sergipe, respectivamente).
E esta não foi a primeira e nem a última sequência desse tipo do Bahia em 2025. Considerando que o tricolor jogasse o máximo de partidas possíveis em todas as competições de mata-mata (Campeonato Baiano, Copa do Nordeste, Copa do Brasil e Libertadores), o número de jogos disputados pela equipe de Rogério Ceni poderia chegar a 89.
Foto: Reprodução
Da mesma forma, o Vitória também poderia chegar a 89 partidas na temporada, já que disputou as mesmas competições que o Bahia, com exceção da Libertadores, já que o time rubro-negro se classificou para a Copa Sul-americana. Feliz ou infelizmente, o Leão da Barra foi eliminado de forma precoce na Copa do Brasil, na Copa do Nordeste e na Sul-americana, de modo que tivesse um calendário menos apertado e com mais semanas livres.
Os times que acompanham a dupla BAVI no ranking de mais jogos possíveis em 2025 são justamente aquele que participaram da Copa do Mundo de Clubes: o Botafogo, com um teto de 86 jogos; Flamengo e Palmeiras, que poderiam chegar a 84 partidas; e o Fluminense, que tinha um potencial de fazer 83 jogos na temporada.
O Botafogo, especificamente, foi vítima do calendário do futebol brasileiro quando disputou a Copa Intercontinental da Fifa, em dezembro de 2024. Ainda sob o comando de Artur Jorge, o alvinegro carioca encarou uma dura maratona de seis partidas em 18 dias para conquistar a Libertadores e o Campeonato Brasileiro.
Na última rodada do Brasileirão, o Botafogo jogou no Rio de Janeiro contra o São Paulo, no dia 8 de dezembro. No dia seguinte, a equipe encarou uma viagem de 15h até o Catar, onde jogou contra o Pachuca, do México, no dia 12 de dezembro.
Enquanto o Botafogo enfrentou uma sequência incessante de jogos, o time mexicano teve mais de um mês de preparação para a partida. Dessa forma, a vitória de 3 a 0 do Pachuca sobre o time brasileiro não trouxe um resultado muito diferente do que a disparidade física pré-jogo sugeria.
Com a perspectiva de se classificar para a decisão, o Botafogo chegou a poupar alguns titulares na partida contra o Pachuca, o que aumentou ainda mais a vantagem do time mexicano em campo. Além disso, todos os três gols do Pachuca foram marcados na segunda etapa, escancarando que o Botafogo não teve físico para sustentar os dois tempos do jogo.
Inversão de papéis na Copa do Mundo de Clubes
Contudo, o que aconteceu com o Botafogo no Mundial contra o Pachuca não foi um caso isolado. Com a Copa Intercontinental de Clubes sendo realizada no final de cada ano, os times brasileiros e sul-americanos campeões da Libertadores sempre chegavam extremamente desgastados para a disputa do torneio após fazer 60, 70 ou até 80 jogos durante a temporada.
Do outro lado, os clubes europeus iam para o torneio no meio da temporada europeia, ou seja, com uma carga de jogos muito menor antes da disputa do Mundial. O resultado era um desequilíbrio físico que - somado ao desequilíbrio financeiro e, consequentemente, técnico - fez com que os clubes europeus vencessem 23 dos 29 títulos da Copa Intercontinental de Clubes a partir de 1995, quando a Lei Bosman foi instituída.
Em 2025, com a primeira edição da Copa do Mundo de Clubes sendo disputada no meio do ano, ou seja, no final da temporada europeia, os clubes do velho continente chegaram muito mais desgastados do que o costume. Além disso, condições climáticas não habituais ao contexto europeu, como o calor extremo, fez com que as equipes europeias fossem expostas às circunstâncias que os clubes brasileiros e sul-americanos convivem desde sempre.
Dessa forma, foi possível ver um equilíbrio maior do que muitos esperavam nos confrontos entre os times da América do Sul e os grandes times europeus, a exemplo do Fluminense, que empatou com o Borussia Dortmund na estreia, venceu a Inter de Milão nas oitavas de final e só foi parado na semifinal pelo Chelsea, campeão do torneio. Esse mesmo Chelsea já havia perdido por 3 a 1 para o Flamengo na fase de grupos.
Foto: Divulgação/Conmebol
No entanto, mesmo que os quatro times brasileiros tenham chegado à Copa do Mundo de Clubes na metade da temporada e com um ritmo melhor que os times europeus, o número de partidas disputadas pelos brasileiros em 2025 ainda era maior do que a maioria dos seus adversários. O time que mais havia disputado jogos no ano antes do Mundial foi o Fluminense, com 36 partidas, empatado com o Real Madrid. Flamengo e Palmeiras vinham na sequência com 35 jogos, o mesmo número que PSG e Inter de Milão. O Botafogo, por sua vez, foi o sétimo time com mais jogos disputados no período: 32.
Além disso, ao olhar para os 12 meses que antecederam a competição, os quatro clubes brasileiros foram os que mais entraram em campo. Flamengo (78), Botafogo (73), Fluminense (72) e Palmeiras (70) jogaram mais que todos os times europeus no período que compreende à temporada europeia, visto que o Real Madrid, com 62 jogos, foi o clube europeu que mais entrou em campo nesse recorte.
Contudo, o caminho para melhorar o nível do futebol brasileiro não pode consistir na romantização do desgaste físico causado pelo número exorbitante de jogos, visto que os clubes e jogadores que atuam no Brasil - em teoria - seriam mais resilientes do que os clubes e jogadores do futebol europeu.
Piora do produto
A parte física explica, em grande parte, o domínio do Mirassol sobre o Bahia, a derrota do Botafogo diante do Pachuca e as sucessivas derrotas das equipes da América do Sul na Copa Intercontinental, além da queda de nível dos clubes europeus na Copa do Mundo de Clubes.
Então, o que fazer para que essa questão deixe de ser um problema no futebol brasileiro? Por quanto tempo será normalizado que algumas equipes possam fazer 80 jogos na temporada, sendo obrigadas a perder jogos por falta de intensidade, ou, mesmo que não percam, desempenhem um nível muito abaixo do que poderiam?
Quando isso acontece só de um lado, como foi entre Bahia e Mirassol, geralmente é possível observar o domínio do time que chega mais “inteiro”; há uma discrepância na competitividade. Porém, quando os dois times chegam cansados e desgastados após uma maratona de jogos, o que tende a ser visto em campo é uma partida que representa a antítese do propósito inicial do futebol, sobretudo o brasileiro: o espetáculo.
Em um esporte movido pela paixão dos espectadores, se atentar à qualidade do jogo é um prisma fundamental para continuar gerando interesse no público-consumidor desse esporte. Em um contexto capitalista, o futebol deixou de ser somente esporte e paixão para se tornar, também, um produto.
Nesse sentido, não encarar o futebol brasileiro como um produto a ser comercializado - o que já é - significa que não haverá um esforço para que esse produto melhore e seja vendido da melhor forma. Um produto melhor significa uma maior comercialização dos direitos de transmissão, que traz mais dinheiro para os clubes serem capazes de ter melhores jogadores, o que eleva o nível competitivo e melhora o espetáculo. A partir daí, o ciclo se repete.
Outros fatores, como a qualidade e padronização dos gramados, problemas de arbitragem, além de uma cultura futebolística que prioriza resultados imediatos em detrimento de desempenho a médio e longo prazo, somam-se à questão do calendário para fazer com que o futebol brasileiro seja muito pior do que poderia. Contudo, ter isso em pauta já é um começo para que mudanças positivas possam ser vistas em um futuro não tão distante.
Samir Xaud e a possível solução
Para Samir Xaud, atual presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), uma saída é diminuir o número de datas nos campeonatos estaduais. Ao contrário do que muitos defendem, acabar com os estaduais não parece ser uma alternativa plausível para o presidente da instituição que rege o futebol brasileiro, mas uma reorganização nos formatos dos diferentes torneios espalhados pelo país é, sim, uma possibilidade real.
Foto: Rafael Ribeiro/CBF
No dia 11 de agosto, Xaud prometeu entregar em até 60 dias uma proposta de um novo calendário para o futebol brasileiro, que será apresentada para análise dos clubes e federações. Segundo o presidente da CBF, a principal mudança estará na redução dos campeonatos estaduais para, no máximo, 11 datas. Para Xaud, a mudança é inegociável.
Não tem negociações, serão 11 datas [...] o calendário brasileiro é muito cheio. Se não fizermos a redução, não vamos conseguir cumprir as tabelas.
O presidente entende que os estaduais terão de se adequar às normas da CBF e que a provável alteração é benéfica a todos os envolvidos, sobretudo em 2026, ano da primeira edição ampliada da Copa do Mundo, com 48 seleções. Em 2025, os estaduais foram disputados com, no máximo, 16 datas, caso do Campeonato Paulista.