Justiça para mães do Zika: pensão vitalícia é aprovada após uma década de luta
Lei histórica reconhece a omissão do Estado durante a epidemia e garante pensão no valor do teto do INSS a famílias afetadas
Foto: Reprodução / aBRAÇO a microcefalia
Após quase dez anos de espera, o Congresso Nacional promulgou, no dia 2 de julho de 2025, a Lei 15.156/2025, que assegura pensão vitalícia e indenização por danos morais a crianças com a síndrome congênita do vírus Zika, nascidas entre 1º de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2019. A conquista, celebrada como uma reparação histórica, é resultado da mobilização incansável de mães e organizações sociais que lutaram por dignidade, justiça e reconhecimento.
“O caminho até a liberação do benefício foi uma jornada de luta política, judicialização e resistência das famílias”, explica Joana Passos, uma das fundadoras da ONG aBRAÇO à Microcefalia, que acompanhou de perto todo o processo.
A epidemia de Zika, que atingiu o país em 2015, provocou o nascimento de cerca de 5 mil bebês com microcefalia e outras alterações neurológicas graves. Em meio à emergência em saúde pública, o governo federal criou o BPC temporário por meio da Lei 13.301/2016, garantindo assistência limitada a três anos. Em 2020, veio a primeira pensão especial, mas ainda aquém da demanda das famílias.
“O Estado levou quase uma década para reconhecer essa realidade. Agora, com a indenização e a pensão vitalícia no valor do teto do INSS, nós, mães, finalmente temos um mínimo de segurança e dignidade”, afirma Joana. “Esse benefício vai permitir manter o básico: garantir os tratamentos, continuar com as terapias, comprar o que essas crianças precisam para viver com um pouco mais de qualidade de vida. É um alívio.”
Uma luta de mães
A virada veio com o PL 6064/2023, de autoria da senadora Mara Gabrilli, que reconhecia a omissão do Estado e previa:
- Pensão vitalícia no valor de R$ 8.157,41 (teto do INSS);
- Indenização única de R$ 50 mil por dano moral;
- Ampliação da licença-maternidade.
O projeto foi aprovado com apoio maciço no Congresso, mas em janeiro de 2025, o presidente vetou integralmente a proposta, alegando inconstitucionalidade, falta de previsão orçamentária e risco à isonomia. Como resposta, o governo editou a MP 1.287/2025, oferecendo um benefício único de R$ 60 mil, condicionado à disponibilidade orçamentária — medida que não foi regulamentada e acabou perdendo validade em junho.
A reação foi imediata: famílias de todo o país se organizaram, ocuparam Brasília, pressionaram o Legislativo e mobilizaram a imprensa.
“Nesse cenário, as famílias de todo o Brasil se uniram. Organizaram visitas a parlamentares, mobilizaram a imprensa e lideraram um grande movimento nacional por justiça e dignidade”, lembra Joana.
O esforço coletivo funcionou: em 17 de junho, o veto presidencial foi derrubado com 520 votos favoráveis e apenas dois contrários, tornando a proposta oficialmente lei.
O impacto para quem sempre sustentou sozinha
A maioria das mães afetadas são mulheres negras, periféricas e chefes de família. Muitas abandonaram suas carreiras e enfrentaram anos sem qualquer apoio contínuo do Estado. A nova lei, mesmo ainda sob risco de questionamentos jurídicos — a AGU sinalizou que levará o caso ao STF —, representa uma conquista concreta.
“São mulheres que abriram mão dos próprios sonhos, da carreira, da vida pessoal, para se dedicar integralmente aos filhos com múltiplas limitações. A luta de uma mãe nunca será em vão”, afirma Joana, emocionada.
O papel das ONGs e da rede de apoio
Muito antes do reconhecimento oficial do Estado, foram as organizações civis que acolheram, informaram e lutaram por essas famílias. A aBRAÇO à Microcefalia, por exemplo, nasceu em Salvador de forma espontânea, após um grupo de mães se conhecer num grupo de WhatsApp e decidirem se reunir.
“Na primeira reunião, estavam presentes onze famílias, todas em busca de acolhimento, informação e apoio diante de um diagnóstico ainda desconhecido e cercado de incertezas”, conta Joana.
Com o tempo, a ONG se tornou referência nacional. Só durante sua presidência, Joana estima que foram mais de 12 mil atendimentos diretos e 100 mil pessoas alcançadas indiretamente. A Abraço atuava com encontros, oficinas, reabilitação e também incidência política — organizando mobilizações, audiências públicas e reuniões com autoridades.
“O papel essencial das ONGs é construir pontes — entre as famílias e o poder público, entre as demandas reais e as políticas que precisam existir”, afirma.
A ONG também integra a UNIZIKA (União das Associações do Brasil), que reúne mais de 20 entidades de todo o país com um único propósito: fortalecer a rede de apoio e garantir políticas públicas permanentes.
O próximo desafio
Embora a lei já esteja em vigor, ainda há um último obstáculo: a judicialização. A Advocacia-Geral da União (AGU) considera inconstitucional a criação do benefício sem fonte de custeio. O tema deve ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que pode atrasar sua aplicação.
Enquanto isso, mães como Joana seguem mobilizadas — agora, mais do que nunca, cientes de que suas vozes têm força.
“Foi uma luta coletiva, incansável, para garantir que as respostas do Estado fossem mais rápidas, eficientes e verdadeiramente comprometidas com a dignidade dessas mães e de seus filhos.”