Quadrinhos baianos ganham vida através de campanhas de financiamento coletivo
Autor chegou a arrecadar quase 400 mil reais em cinco projetos para produção e venda de sua obra

Foto: Divulgação
Após ter sua ideia recusada por uma editora, o poeta e educador, Anderson Shon, decidiu apostar que as pessoas não só gostariam de ler sua história, como também estariam dispostas a apoiá-la financeiramente. Em parceria com o ilustrador Daniel Cesart - o autor da ideia de financiar o projeto através de uma vaquinha online - Shon apresentou ao mundo o conceito do quadrinho Estados Unidos da África. “E se o Super-Homem fosse africano?”.
A premissa do projeto é contar a história de Rei Bantu, homem camaronês que surpreendentemente ganha poderes e unifica o continente africano. A partir disso ele percebe que não dá para combater a fome do mundo com super-força e, por conta disso, começa a agir para além de seus poderes. Ao mesmo tempo o personagem lida com o ódio e preconceito de outros paises incomodados com a hegemonia dos Estados Unidos da África e a presença de negros no poder.
(Rei Bantu dos Estados Unidos da África)
“Eu sabia que era uma história que o público iria entender, porque ela tem uma força. Essas obras são apoiadas porque são incríveis, porque partem de uma premissa incrível, porque dão protagonismo a quem normalmente não tem. Isso precisa ser apoiado”, explica Anderson Shon. O autor acredita que o financiamento coletivo se tornou uma válvula de escape para ideias incríveis e que muitas vezes não cabem no mercado ou não são apoiadas por editoras.
Publicado no Catarse - plataforma de financiamento coletivo - Estados Unidos da África foi apoiado por 302 pessoas e arrecadou R$27 mil, valor maior do que os quase 25 mil reais estabelecidos como meta da campanha, que se encerrou em janeiro deste ano. Quem decidiu apoiar o gibi deveria escolher entre planos que iam de R$10 a R$1 mil, com recompensas determinadas pelo valor pago. Nome nos agradecimentos, o próprio quadrinho, marcador de página, bottom e até uma bandeira da fictícia nação africana; foram algumas das recompensas disponíveis.
Para além dos Estados Unidos da África
Estados Unidos da África não é um fenômeno isolado. Apenas no Catarse - pois existem outros sistemas como Kickante, Benfeitoria e Vakinha - já foram investidos mais de R$200 milhões em projetos independentes, de acordo com dados da plataforma. Entre as mais de 20 mil propostas financiadas no site, outro autor baiano também é destaque na plataforma.
Com um total de quase 400 mil reais arrecadados em cinco projetos para produção e venda dos quadrinhos Contos dos Orixás (volume 1 e 2), Hugo Canuto é um quadrinista baiano que com o apoio popular viu sua arte chegar até Hollywood. Não só porque sua obra que adapta as lendas das divindades provenientes da África Ocidental foi lançada nos EUA pela editora Abrams Books, mas também porque uma de suas artes aparece no filme norte americano Space Jam: Um novo legado (2021).
Imagem de divulgação dos Contos dos Orixás - O Rei do Fogo
Como nos gibis de super-heróis em que todas as origens de personagens são semelhantes - acidentes radioativos ou tragédias familiares - os quadrinistas baianos também parecem partir do mesmo lugar. Hugo Canuto conta que escolheu o financiamento em 2017 por perceber que as editoras de quadrinhos, quase todas do sudeste, não davam relevância para projetos de outras regiões, origens e perspectivas.
“O financiamento coletivo é um modelo prático, direto, que constrói a relação entre o leitor e o artista e fortalece as redes de criação e produção, contornando os intermediários que muitas vezes carecem de visões mais amplas sobre a linguagem das HQs, ainda muito limitadas, ao menos aqui, a ideia de ‘arte para crianças’”. Ele aponta que esse sistema ainda precisa ser mais conhecido na Bahia, que ainda é dominada pela cultura de editais.
Segundo Ian Fraser, escritor do livro A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê e que também já teve projetos financiados no Catarse, o mercado editorial ainda é conservador e pode aprender muito com o financiamento coletivo. O autor explica que as editoras são muito fechadas para quem está começando e não é influencer ou tem um contato dentro do ramo.
Por que tanto apoio?
É nesse cenário que o financiamento coletivo aparece não só como um meio de viabilizar um projeto, mas também para mostrar seu trabalho pro mundo, conforme indica Daniel Cesart, desenhista dos Estados Unidos da África. “Quando as pessoas veem produção independente de pessoas que são nordestinas, autônomas, que querem ver seus sonhos realizados, elas se identificam. Sem falar que elas estão vendo super-heróis e personagens que fazem parte da herança cultural que a gente tem. Esse é um dos fatores fundamentais para as campanhas terem sido bem sucedidas”.
Fraser comenta que tanto suas obras quanto as citadas anteriormente partem de uma herança cultural e se movimentam em busca do “ser brasileiro”. “Isso é um fenômeno que está conectando o brasileiro, a gente vive um momento de, principalmente na questão da arte, de apreciação da nossa própria cultura. Ouso até dizer que no futuro vamos ver esse tempo provavelmente como um resgate, assim como foi o modernismo, a Tropicália… são movimentos de autoafirmação do ser, da nossa raiz, de quem somos nós”.
O quadrinho Estados Unidos da África, de Anderson Shon e Daniel Cesart, está em fase de pré-venda no Catarse e o seu lançamento oficial aconteceu na última sexta-feira (6), às 19h, na Academia de Letras da Bahia. O quadrinho Contos dos Orixás: O Rei do Fogo, de Hugo Canuto, também está em pré-venda no Catarse.
Anderson Shon e Daniel Cesart em pré-lançamento de Estados Unidos da África na Flipelô